Relatos de casos

A HISTÓRIA DE KHADIJA GBLA

        
       Nascida em Serra Leoa, Khadija Gbla e sua família se mudaram para Gâmbia para fugir da guerra e lá, quando tinha cerca de 10 anos, teve seu clitóris retirado. A moça conta que não tinha a menor ideia do que estava por vir quando entrou em um carro com seus pais e irmã, toda excitada pensando que iriam se divertir, e é possível sentir sua angustia em seu tom de voz na gravação:

(...) Invés disso, terminamos em um arbusto. Minha mãe começou a falar com esta velha senhora. Ela aparentava ser muito velha e dura, ela simplesmente era muito assustadora. De repente ela vinha a mim com uma faca, uma daquelas que não viam água ou qualquer outra coisa por um bom tempo. Então minha mãe me levou a algo como um quarto e quando me dei conta ela estava me imobilizando. Eu pensei que a senhora ia me matar, esse era o meu pensamento inicial até ela despir meu corpo e eu continuava sem entender o que ela iria fazer porque não me explicavam. Não sabia o que estava planejado. Eu continuava esperando que iriamos ir curtir o feriado, mas de súbito ela segurou o que hoje sei que é o clitóris e começou a cortar centímetro por centímetro enquanto minha mãe me segurava.

       Um tempo depois do acontecido sua família se mudou para a Austrália e, morando lá, cedo percebeu o quanto o que havia acontecido era errado. Conta que se sentia chateada e com raiva de sua mãe, e adiciona:

Não penso que um dia irei superar isso. Eu a perdoo somente porque ela é uma vítima desta cultura da mesma forma que eu... mas há dias que continuo zangada. É uma cultura, isso está enraizado na nossa nação [Serra Leoa] e a quem somos.

Ao ser questionada sobre como acha que a MGF se tornou cultura, Khadijadiz que provavelmente a MGF foi disseminada pelos homens na antiguidade para oprimir as mulheres sexualmente e ter maior controle sobre elas.
      Hoje Khadija ajuda combater a prática nas comunidades africanas da Austrália. Acredita que somente a educação pode acabar com a mutilação genital feminina e comenta a recente intensificação das leis contra o ato na Austrália: “É fazer certeza de mandar a mensagem de que nós não vamos tolerar MGF na Austrália e faremos o que for, inclusive na lei, para ter certeza de que nenhuma criança tenha que passar por algo que alguém como eu passou”.

Adaptado dehttp://www.abc.net.au/news/2014-02-06/genital-mutilation-victim-speaks-out/5243238



A HISTÓRIA DE LESHA


Nasci nos Estados Unidos e vivia aqui, então fui mandada para a Guiné para as férias de verão. Eu não sabia que isso ia acontecer, e eu nunca fui avisada. Foi o maior engano e traição de minha vida. Mas a dor física me marcou mais ainda.
    Fui para a África para aprender sobre minha identidade e acabei sendo traumatizada para a vida toda. Eu não sabia que MGF era parte de minha identidade e hoje isso é o que mais me machuca.
      Eu fui mutilada junto com minha irmã caçula. Ela tinha nove anos e eu onze. Depois da circuncisão eu não sei direito o que aconteceu, mas ela morreu. O que me lembro é de ela ter sido culpada por eles por não aceitar as ervas e tudo que faziam para ajuda-la, o que nunca incluiu leva-la ao médico. Ela era acusada por morrer, e eu era elogiada por aguentar bem. Ela era minha melhor amiga. Nós dividíamos o quarto. Nós costumávamos brincar de bonecas e brincar de festa do chá juntas. Ela morreu, e a culparam por isso. Quando voltamos, ninguém perguntou por ela. Ninguém perguntou o porque de ela não estar mais aqui. Disseram-me para esquecer, como se nunca tivesse acontecido.
         Depois do ritual, eu fui colocada em um quarto com outras meninas, homens não eram permitidos a nos ver. Lembro-me de não ver minha família por dias – não posso dizer por quanto tempo. Quando eu finalmente voltei para os Estados Unidos e vi minha família, eles estavam felizes e orgulhosos. Eu era finalmente uma mulher. Pura.
         Sexo é doloroso, e eu o odeio, odeio e odeio. Detesto ser tocada. Sinto como se fosse um estupro todas às vezes. Eu choro por dentro, eu choro alto, meu marido não se importa. Não o machuca. Eu tive o tipo 3 de MGF, e fui aberta novamente depois de nos casarmos.
       Meu marido me matará se um dia descobrir que falei contra a MGF e meus parentes o apoiarão.  Mas sei que minha história precisa ser ouvida. Quando alguém fala sobre MGF, toda a comunidade se volta contra ele. Além disso, não temos proteção. Ninguém entende o que eu passo ou o que isso significa.
            Minha esperança é que sobreviventes de MGF tenham um lugar seguro para ir sem serem julgadas. Eu também quero uma cirurgia reconstrutiva não só para mim, mas também para todas como eu. Para os médicos que estiverem lendo isso, por favor, considerem oferecer cirurgias gratuitas para mulheres como eu. Isso mudaria nossas vidas. Eu espero que o governo tome atitude e façam conscientização como deveriam. Não acho que posso falar sobre isso novamente, mas espero que outras falem.


ENTREVISTA COM VÍTIMAS EM GUINÉ-BISSAU


        Em função do trabalho de conscientização feito por organizações como as Nações Unidas, em 2011 o governo de Guiné-Bissau proibiu a mutilação genital feminina. Devido a isso, o tema tem ganhado mais espaço para debate na comunidade e o combate a MGF tem sido intensificado desde então, ganhando apoio inclusive de líderes religiosos mulçumanos, que agora alertam os seguidores da religião majoritária do país que o ato não tem embasamento no Corão, quebrando o argumento religioso da prática entre seus fiéis.
     Ano passado a jornalista portuguesa Salomé Pinto visitou o país africano entrevistando profissionais de saúde, membros do governo e vítimas de MGF, que contaram suas experiências e falaram sobre a forte pressão social que as meninas sofrem para fazer o procedimento e a falta de escolha das mães ao saber que suas filhas serão isoladas socialmente até mesmo por outras crianças caso não passem por excisão. Confira a reportagem na íntegra: 

A FLOR DO DESERTO


À medida que o sol se punha, as sombras envolviam lentamente a escassa vegetação que teimava em crescer naquele ambiente tão inóspito. A noite havia chegado mais uma vez ao deserto. Após um longo dia pastorando o pequeno rebanho de onde retirava seu sustento, a família se reunia em sua pequena cabana para descansar. A mãe se aproxima de uma de suas filhas e diz:
- Seu pai foi a uma cigana. Ela deve vir aqui qualquer dia desses.
A garotinha sabia o que aquilo significava: em poucos dias daria inicio a seus dias como mulher. Apesar de não saber como era a cerimônia, sabia que aquele acontecimento misterioso era algo especial para seu povo e que todas as meninas passavam por aquilo quando os pais achavam que o momento era certo.
Na noite de véspera do evento, a garotinha ganhou mais comida no jantar e sua mãe lhe disse para não tomar muita água ou leite. A menina permaneceu acordada com o entusiasmo, até que viu sua mãe parada em sua frente, gesticulando. Ainda estava escuro. Agarrou seu cobertor e seguiu sua querida mãe. Andaram até uma moita e esperaram. Estava amanhecendo, e a garota ouviu passos: a cigana chegara. A mulher era direta: “sente ali”, disse, apontando para uma rocha. Mãe e filha se sentaram na pedra. A mãe posicionou a filha de forma que a cabeça dela repousasse em seus seios, prendeu os braços da criança com as coxas e colocou um pedaço de raiz sua boca, pedindo para mordê-lo, e sussurrou em seu ouvido:
- Tente ser uma boa garota, querida.  Seja forte, pela mamãe, e irá ser rápido.
Então, com frieza nos olhos, a cigana afastou as pernas da menina e retirou uma navalha quebrada do bolso de sua velha sacola. Havia sangue seco na lâmina. A cigana cuspiu no sangue e tentou limpa-lo na barra de seu vestido. A mãe tampou os olhos da filha.
A garota sentiu o toque frio da lâmina seguido de uma dor horrível. Podia ouvir o movimento da navalha cortando sua pele. A mãe segurava fortemente a filha que chorava, gritava e se contorcia imersa em uma sensação indescritível de dor. A garota desesperada pedia a deus que aquele pesadelo acabasse logo e em alguns instantes desmaiou.
Ao acordar, seus olhos não estavam mais vendados. A pobre menina viu que a cigana segurava um punhado de espinhos que pareciam ter sido retirados de uma acácia próxima a ela. A mulher utilizava os espinhos para furar sua pele e passar uma linha branca e grossa por entre as perfurações, costurando a ferida. Sua dor era tão grande que desejava morrer.
Fechou os olhos e quando os abriu novamente a mulher havia ido embora, suas pernas estavam amarradas de forma que não podia se mexer. Virou o rosto e viu a rocha onde estava antes do ultimo desmaio. Havia muito sangue na rocha, como se um animal tivesse sido abatido naquele local. No topo, viu pedaços de sua carne secando ao sol.
Mãe e irmã mais velha carregaram a menina até um abrigo improvisado na sombra de um arbusto para esconder a menina do sol enquanto terminavam uma cabana debaixo duma árvore próxima. Era a tradição. Aquela cabana seria onde a garota se recuperaria sozinha nas semanas que viriam, apenas recebendo visitas de sua mãe para ser alimentada.
Nas semanas que se passaram, a menina contraíra infecção. Em febre alta, sua consciência ia e vinha de forma abrupta. Sua vida parecia que ia se esvair a qualquer instante e, em todo aquele tempo deitada com as pernas amarradas e sofrendo, a única coisa que podia fazer era se perguntar o porquê daquilo tudo e o porquê de ter sido mutilada com permissão e ajuda de sua mãe.
Um trecho de um livro de ficção? Uma tentativa de narrar um ritual praticado em tempos remotos por povos extintos? Infelizmente, não. Esta é a memória mais vívida que Waris Dirie possui de sua infância. Nascida em 1965 em uma família de nômades de um deserto da Somália próximo à borda da Etiópia, Waris Dirie passou por essa experiência traumática aos seus cinco anos em função de uma tradição comum em grande parte da África, alguns países do oriente médio e regiões da Ásia e América Latina. Aos treze, decidiu fugir de casa após seu pai decidir que iria se casar com um homem de idade suficiente para ser seu avô.
Na noite de véspera do casamento, depois de uma discussão com a mãe sobre seu casamento forçado e sua decisão de fugir, foi acordada por sua mãe, que sofria em ver o destino da filha ser decidido pela tradição de seu povo. Sozinha, descalço e com apenas a roupa do corpo, atravessou o longo deserto até Mogadíscio, cidade onde sua tia morava. Com ajuda da tia fugiu para Londres, trabalhou como doméstica e mais tarde em um McDonald’s, onde, aos 18 anos, foi descoberta pelo fotógrafo britânico Terence Donovan.

Com sua beleza exuberante, Waris Dirie rapidamente se tornou uma modelo internacional. Desfilou nas maiores passarelas do mundo, chegando até a fazer participação em um filme da série 007. No ápice de sua carreira, no inicio de 1997, numa entrevista para a revista Marie Claire, Waris falou sobre sua mutilação pela primeira vez. Sua entrevista causou comoção do público e lhe despertara novamente os tristes sentimentos que sentira em sua infância.  Por isso, no mesmo ano escreveu a autobiografia “Flor do Deserto”, que se tornou um best-seller internacional e mais tarde, em 2009, recebeu uma adaptação cinematográfica.  Além disso, foi chamada pelas Nações Unidas para se juntar a luta pelo fim da mutilação genital feminina.
Ao reviver suas dolorosas memórias e descobrir a grande quantidade de mulheres que passam pela mesma experiência pelo mundo, Waris decidiu se dedicar exclusivamente a luta contra a mutilação genital feminina. Aceitando o convite no final de 1997, tornou-se embaixadora especial das Nações Unidas, voltando à África para contar sua história e dando inicio a sua jornada como ativista dos direitos humanos.
         Em 2002 fundou a Fundação Flor do Deserto, e hoje, aos 49 anos, é uma das maiores personalidades na luta contra a mutilação genital feminina. Participa de inúmeras conferências ligadas ao assunto conscientizando e sensibilizando desde cidadãos comuns a lideres nacionais, ganhando suporte para a causa e gerando grande número de doações tanto para as Nações Unidas como para sua fundação. Waris Dirie é mais que uma ativista, é uma guerreira, um símbolo de que nenhuma tradição arcaica pode subjugar a força de vontade de uma mulher, de que a beleza e graça podem surgir dos ambientes mais hostis, ela é uma flor do deserto.

                        
Quer conhecer mais sobre Waris? Confira uma entrevista com a modelo aqui e a adaptação cinematográfica de sua biografia aqui.

















       RELATOS DE UMA MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA

          

         Relatos da experiência de alguém que assistiu à uma sessão de Mutilação Genital Feminina. Texto publicado em Português Europeu.
             "A rapariguinha, completamente nua, é imobilizada na posição de sentada num banco baixo por pelo menos 3 mulheres. Uma delas com os braços, muito apertados, à volta do peito da criança; as outras duas mantêm abertas as pernas da criança à força de modo a abrirem bem a vulva. Os braços da criança são amarrados atrás das costas ou imobilizados por duas outras convidadas.
            (...) Em seguida a velha tira a lâmina e extirpa o clitóris. Segue-se a infibulação: a operadora corta com a lâmina o lábio menor de cima a baixo e em seguida raspa a carne do interior do lábio grande. Esta ninfectomia e raspagem são repetidas do outro lado da vulva. A criancinha grita e contorce-se de dor, apesar da força exercida sobre ela para ficar sentada.
          A operadora limpa o sangue das feridas e a mãe, assim como as convidadas presentes, “verificam” o seu trabalho, por vezes pondo lá o dedo. A intensidade da raspagem dos lábios grandes depende da habilidade “técnica” da operadora. A abertura que é deixada para a urina e para o sangue menstrual é minúscula.
         Depois a operadora aplica uma pasta, assegura-se que a adesão dos lábios grandes fica feita através de um pico de acácia, que fura um lábio passando através deste para o outro. Desta maneira enfia 3 ou 4 na vulva. Estes picos são depois mantidos nesta posição com uma linha de coser ou com crina de cavalo. Volta-se a pôr pasta na ferida.
           Mas tudo isto, não é o suficiente para garantir a união dos lábios grandes; por isso a rapariguinha é então atada a partir do pélvis até aos pés: faixas de tecido enroladas como uma corda imobilizam completamente as pernas. Exausta, a rapariguinha é depois vestida e deitada numa cama. A operação dura de 15 a 20 minutos segundo a habilidade da velha e a resistência que a criança oferecer.”

Retirado do livro "Mulheres e Direitos Humanos", publicado pela Anistia Internacional.

Texto retirado de:
http://humanidadedesumana.blogs.sapo.pt/tag/infibula%C3%A7%C3%A3o



 

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